quarta-feira, 12 de junho de 2013

Surpresas

Quem esteve envolvido na primeira edição do Concurso Regional de Leitura não mais afirmará que os adolescentes e os jovens não leem; quem espreitou os sorrisos de empenho, o luminoso ar de responsabilidade assumida, a espontaneidade com que consomem a vida nos bastidores, a leveza que trazem nas suas expetativas, a entrega total a mais um momento… quem assistiu, teve uma grande e profunda surpresa:

Porque muitos dos jovens não só leem como arrastam a leitura para o seu universo povoado e urgente; penetram nela com todas as armas da sua crença quase intocada e mergulham nas frases e nas entrelinhas. Apropriam-se das personagens e regateiam diálogos, invocam as suas próprias experiências e discutem a vida à luz do sentimento.

Muitos dos jovens escrevem e falam sobre estas experiências de leitura, de uma forma tão próxima do modo como sabem viver, que as vivificam, as tornam reais e humanas, as dotam de sentido.

Muitos apalparam as frases, a música e o ritmo do texto, muitos fizeram com ele uma canção, uma dança consonante com os seus movimentos, muitos entenderam a diversidade em culturas estranhas e nunca estranharam a humanidade eterna destas outras lonjuras.

E todos eles, sem exceção, estiveram presentes na totalidade do seu compromisso, entregaram-se à magia de uma comunicação que faz pontes entre autores, leitores, interrogações e partilhas. Todos enveredaram com uma seriedade tocante pela senda que conduz ao fascínio das letras.

Estes existem, movem-se no quotidiano, ficam mesmo ao nosso lado, às vezes sem que lhes demos o verdadeiro crédito. Estão à espera de serem aconchegados em pedaços de literatura envolvente, prontos para contagiar outros, inquietos por se prenderem num encantamento.

E entretanto, desde agora, tornaram-se o outro polo de uma liana que nos completa num universo absolutamente necessário, porque trata da comunicação entre a espécie, algo tão essencial ao homem quanto a sua própria natureza.

Sendo assim, o que nos cabe?

Acreditar cada vez mais, embrenharmo-nos num torneio em que eles poderão sempre participar, mostrando-lhes que não falamos numa linguagem estrangeira, que os teremos sempre em conta e respeitando o ritmo da sua curiosidade, da sua sede de palavras entendíveis, que caminharemos ao compasso do seu deslumbramento.

Esperamos do fundo do coração ouvir estas e outras, muitas mais vozes, aquilo que têm a dizer acerca do universo literário, e só ganharemos se o fizermos com disponibilidade, atentamente.

Foi uma surpresa, portanto, aquilo que nos trouxeram, mas também a certeza de que este percurso que os atrai pela beleza, que os forma pelo contato, que os incorpora pelo exercer da competência leitora, é necessário e ainda está incompleto.

Muito, muito gratos, por agora, felicitamos os que vieram e quiseram compartilhar os seus diálogos connosco.

Madalena San-Bento 
crónica publicada em PRL Presente, Açoriano Oriental, 30 de maio de 2013

Não gosto de letras

Estou a escrever-te para dizer que não gosto de escrever nem de ler, aliás, porque me obrigaram a fazer isso da pior maneira, toda a minha vida, e nunca explicaram para que precisava eu de ser submetido a esta violência.

Estou a escrever-te pela primeira e última vez, espero, só para contar como foram os meus fastidiosos momentos na companhia dos livros: foram horas em que o tempo se arrastava por entre a minha aflição de não entender nada, enquanto pessoas que pareciam compreender tudo falavam acerca das palavras escritas e ainda das que lá não estavam, mas que eles garantiam saber que estariam, se os autores tivessem desejado.

Estou a escrever-te sobre a angústia de não nos deixarem escolher sequer uma palavra, um modo diferente de dizer as coisas, sobre a revolta de te obrigarem a ouvir raciocínios numa linguagem que não é a tua e ainda de terem a pretensão de saber sempre o que te fará bem à mente e por isso terá que ser lido, sem nunca, nunca alguém parar para escutar um pouco o que gostaste mais por entre o que foi ouvido, o que sentes que te faz bem à alma.

Estou a escrever-te para me poder revoltar ao menos com alguém, já que até hoje nunca senti que ler ou escrever fosse uma conversa, mesmo quando alguns fragmentos do que lia e por sorte entendia merecessem resposta.

Porque também me ensinaram que deveria aprender a copiar muito os outros (os tais que escrevem de maneira que eu não entendo) e não quiseram nunca saber das palavras que me nascem na mente quando sinto coisas, ou quando as coisas se insinuam em mim.

Talvez que se alguém me contasse, ao invés de mandar ler apenas, se alguém desfolhasse estes livros herméticos primeiro, eu tivesse podido entrar a medo nestes quartos escritos de paredes pintadas e me tivesse encostado a um canto para apenas ouvir o seu som e decidir devagar o que ele consegue fazer vibrar em mim.

Talvez que se alguém apenas oferecesse a canção da leitura, o poder do afago, não da seriedade das palavras, eu tivesse sido cativado pelos decibéis deste som e depois, devagarinho, me ensaiasse a tocá-lo.
Trago a impressão dolorosa que um livro é algo familiar ao contato, que a minha essência humana quer detê-lo, mas há sempre alguém que me convence que só com muito treino e uma enorme habilidade eu conseguirei decifrá-lo e que me devo deixar guiar pelos passos, pelas técnicas, esquecer por ora o natural, o sentimento. 

Mas a verdade é que nada disso aconteceu; estou num reino surdo, onde nasci com a capacidade da comunicação em palavras e não sei ainda o que lhes faço, muito embora elas andem a pular dentro de mim.

Madalena San-Bento
crónica publicada em "PRL Presente", «Açoriano Oriental», 27 abril 2011